DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Confraria (secreta) dos chefs

Eram sete. Reuniam-se uma vez por semana na casa de um, sempre às segundas-feiras, dia de folga. Levavam um vidro de picles, tremoço, coxinhas, latas de sardinha, salsichas, croquetinhos, mortadela, pão e catchup. E bebiam muito. Rabo-de-galo, coca com vodka, jurupinga, catuaba e o que viesse de comum ou mais trash. Era dia de colocar o espírito encharcado de profissionalismo e poses secando em algum varal. De deixar as frescuras do lado de fora da festa. Ninguém conseguia bancar por muito tempo a hipocrisia do glamour em que viviam. Era preciso vez ou outra usar e abusar de uma válvula de escape.
- Um brinde a esse mundo chato da porra!
- Cheio de etiquetas.
- Cheio de blá, blá, blá!
- Cheio de formalidades.
- Cheio de gente metida e interesseira!
- Um brinde a esse mundo chato da porra!
- Tim-tim!
No dia seguinte acordavam com enxaqueca, sem vontade de prosa, pensando nos peixes frescos que haveriam de chegar, no menu confiance, nas facas novas, no fornecedor de cogumelos, na matéria de capa, na receita inédita, no uniforme engomado, no teste do sorbet, na troca de cozinheiros. Cada um em seu bistrô. A semana começava fria e ia esquentando com a adrenalina da pressão e dos desafios que ocorrem dentro da cozinha.
Eram sociáveis, simpáticos, conquistadores, talentosos, charmosos e canalhas.
E faziam um sucesso danado.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Arroz de ponta cabeça

Quanto de óleo basta para refogar o alho e a cebola do arroz? Nem uma gota. Mas isso é muito automático, aprendemos assim: enquanto pensamos na novela, nos filhos, no caso de amor perdido ou no longo dia de trabalho, vamos despejando o óleo no fundo do tacho. E de prato em prato, engolindo litros, sem necessidade.
Sem nada na panela, a cebola sua e o alho pega no fundinho, daí que é só colocar arroz e água. Também não é preciso ficar horas refogando o coitado. Afoga de uma vez.
Sem rituais para fazer arroz, apenas a água, fria de tudo – o dobro da medida de arroz e mais um copo de lambuja. Sal e um adeus.
Quero ver se não dá certo.



Foto: Regina Bui

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Papo de mães

- ... e como está sua filha?
- Beeeeem, minha filha se casou com um homem maravilhoso, que cozinha e leva o café na cama!
- Ai, dê graças a Deus mulher, porque meu filho casou com uma vagabunda que além de não gostar de cozinhar ainda pede café na cama!

Indigestão

Tem um tal de site de relacionamentos chamado BADOO que está infernizando a vida das pessoas. Você recebe um e-mail de um conhecido dizendo que existe uma mensagem à sua espera. Pura pegadinha de mal gosto, das piores. Portanto, se alguém receber um e-mail convidando-o para ler uma mensagem minha, cuidado, não caia. Isso não é uma rede, é uma teia de caranguejeira!

terça-feira, 26 de maio de 2009

Como Neruda cozinhou um poema

A alcachofra
de terno coração,
vestiu-se de guerreiro,
ereta, construiu
uma pequena cúpula,
se manteve
impermeável sob suas escamas,
do seu lado
os vegetais loucos
encresparam-se,
fizeram-se juncos
bulbos comovedores,
no subsolo
dormiu a cenoura
de bigodes vermelhos,
o vinhedo
ressecou os sarmentos
por onde sobe o vinho,
o alface
dedicou-se a experimentar saias,
o orégano
a perfumar o mundo,
e a doce alcachofra
ali na horta,
vestida de guerreiro,
brilhosa
como uma granada,
orgulhosa,
e um dia
uma com outra
em grandes cestos
de vime, caminhou
pelo mercado
a realizar o seu sonho:
a milícia.
Em fileiras
nunca foi tão marcial
como na feira,
os homens
entre legumes
com suas camisas brancas
eram
mariscais
das alcachofras,
as filas apertadas,
as vozes de comando,
e a detonação
de um caixote que cai,
mas
então vem
Maria
com seu cesto
escolhe
uma alcachofra,
não lhe teme,
a examina,
a observa
contra a luz
como se fosse um ovo,
a compra,
a confunde na sua bolsa
com um par de sapatos,
com um repolho e uma
garrafa
de vinagre
até
que entrando na cozinha
a submerge na panela.
Assim termina
em paz
esta ocupação
de vegetal armado
que se chama alcachofra,
logo
escama por escama
desvestimos
a delícia
e comemos a pacífica pasta
do seu coração verde.
"Odes Elementais" / Pablo Neruda

domingo, 24 de maio de 2009

Vitello Tonatto

Ninguém fala dele, um prato frio, típico do Piemonte, região da Itália. Apesar de ser apreciado no verão, deixo aqui essa receita que me faz salivar quando bate a saudade. Pode parecer estranho, pois não temos o hábito, nem de longe, de misturar carne com um molho à base de atum e gostinho de limão. Mas querido leitor, isso faz arrepiar o couro, eu “agarantchio!”
Ingredientes:
1 lombo de vitela (+/- 700 gr)
250 ml de vinho branco seco
250 ml de água
2 dentes de alho amassados
1 folha de louro
1 talo de salsão picado
1 cebola pequena picada
Pimenta-do-reino
Sal
Modo de preparo:
Tempere o lombo com sal e pimenta. Em uma panela, esquente um pouco de óleo e doure a carne por completo. Em seguida, cubra com a água, o vinho e adicione a folha de louro, o alho, o salsão e a cebola. Cozinhe em fogo (médio/baixo) por cerca de 50 minutos, virando o lombo de vez em quando. Retire a carne e deixe esfriar. Coe o conteúdo restante da panela. Reserve os legumes e o caldo e descarte a folha de louro. Quando a carne estiver fria, corte em fatias finas e sirva com o molho (também frio) por cima.
Molho:
150g de maionese
200g de atum em lata
2 colheres de alcaparras
Caldo e legumes do cozimento da carne
Limão a gosto
Sal
Em um liquidificador bata a maionese, o atum, as alcaparras, o salsão e os temperos cozidos, o limão e junte, aos poucos, o caldo até chegar numa consistência cremosa. Corrija o sal.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Desejos exagerados, emoções escancaradas

Já disse anteriormente que muitas vezes não é a fome quem manda na gente, mas o paladar. Aquela tara de comer alguma coisa que vem à memória faz com que movamos mundos e fundos até degustarmos algo que nos deu prazer anteriormente ou qualquer nova tentação que apareça. Tudo por um momento de felicidade plena daquelas que só a boca e suas mil ferramentas sabem executar. E esse tipo de desejo parece que mata; em alguns momentos chega a ser pior do que a saudade de um amor perdido. Enquanto você não o fartar por completo, o sofrimento da vontade cega e louca lhe perseguirá sem dó. As expressões “comer de joelhos” e “manjar dos deuses”, devem ter surgido num desses delírios que nos domina numa das três fases a seguir: a do desejo, a da degustação e a da satisfação.
Uma vez estava falando sobre a receita de um purê – aquele de mandioca, com creme de leite e parmesão ralado, quando fica cremoso e quente – e uma amiga, engolindo a seco, o definiu:
- Isso é Deus em forma de purê?Não tinha ouvido nada mais exagerado em minha vida até então.
Um outro chef me contou que, num jantar, uma convidada veio lhe agradecer – chorando - e o abraçou apertado, após comer seu filé au poivre, aquele medalhão dourado e lindo de mignon, banhado de molho à base de caldo de carne do mais artesanal com pimentas verdes frescas.
Chorando? Também nunca tinha visto isso!
Mas existe um comportamento único, e esse, você pode estar no sul do Rio Grande do Norte ou no norte do Rio Grande do Sul, ou ainda do outro lado do mundo, no meio do oceano, não importa, é universal. É quando se trata do minuto exato de experimentar aquilo que tanto se quer, de deixar a boca e todos os sentidos em êxtase, da mastigação que faz você esquecer por completo que carrega um corpo vestido, e os olhos se fecham, e a cara que se faz é quase de dor. Depois solta aquele som meio desmaiado, no momento em que os ombros caem: “huuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmmmmmmm...”


Foto: Regina Bui

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mineirice poetizada

CASAMENTO
Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A comida que vale por um abraço

Cozinha mineira lembra cozinha italiana. Não pelos temperos propriamente ditos, mas pela cultura da fartura e hospitalidade à mesa; da típica preocupação maternal, em que a provedora dos paladares exigentes (ela mesma que os acostumou assim), não sossega enquanto todos não estiverem satisfeitos; da casa cheia e da cozinha que funciona dia e noite sem parar.
Não conheço livro que revele melhor e de maneira mais fiel as receitas mineiras de toda a breve história dos últimos trezentos anos do que Fogão de Lenha, de Maria Stella Libânio Christo. Ele é um verdadeiro documento baseado em muita pesquisa e dedicação realizadas pela autora e tem por obrigação fazer parte da biblioteca culinária que montamos em casa com todo carinho. Os textos que acompanham ajudam-nos a sentir o gosto de cada receita e revela também o espírito do que é de fato essa cozinha tão rica.
O livro é dividido em: Quitandas (variedades servidas às visitas, como bolos, bolinhos e biscoitos), Doces, Quitutes (os pratos, quentes ou frios) e Licores e Bebes.
Veja só que curiosa a receita da bolachinha chamada Mentira e a dica prática que segue:
4 xícaras rasas (chá) de açúcar / 2 xícaras rasas (chá) de farinha de trigo / 8 ovos
Bater os ovos como para pão-de-ló. Juntar aos poucos o açúcar e a farinha, mexendo sempre. Com uma colherinha, pingar pequenas porções num tabuleiro polvilhado de farinha de trigo. Levar a forno quente para assar.
OBSERVAÇÃO: Duas “mentiras” unidas com doce de leite de recheio fazem a quitanda chamada casadinhos.
Você percebeu, fiel leitor, que trocadilho mais irônico? Eu, hein!

Foto: Regina Bui

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A cozinha contemporânea

Anita, uma leitora e também blogueira, indicou o Spanish Recipes, blog de clássicas receitas espanholas, porém repaginadas. Clássicas receitas feitas e servidas de maneira diferenciada fazem parte da cozinha contemporânea, seja na Espanha, aqui ou na China. Pegando carona no texto “Da naftalina ao microchip”, de dois andares abaixo, quero exemplificar melhor o que é isso para quem não sabe. Acho difícil alguém não saber, mas de qualquer maneira, falar de comida é sempre agradável.
Sem dúvida nenhuma a cozinha contemporânea aconteceu por causa da globalização. Ficou sem fronteiras, seja pela facilidade de termos à mão produtos importados como nunca antes, seja pela rapidez de informações que adquirimos através da internet e demais conseqüências. Por causa disso as coisas mudaram na gastronomia.
Hoje um pato com laranja não é o mesmo pato com laranja do passado. Pelo menos não na apresentação. Talvez você encontre um moderno pato com laranjinhas kinkam em algum cardápio atualizado. Um risotto de camarão feito com arroz arbóreo italiano pode ganhar ares de comida oriental, se feito com saquê no lugar de vinho branco, caldo a base de algas, Nam pla e curry verde. E o que dizer de um cuscus servido em casamento? Nem pensar! A não ser que seja feito em forminhas individuais de 5 cm de diâmetro, com pedaços de lagostins ao invés de sardinhas em lata e servido em pratinhos decorados com dressing de foie gras e pimenta rosa. O doce da foto é Romeu & Julieta, com goiabada mole e queijo de cabra. Assim, até uma comida regional pode ser reinventada sem deixar de ser elegante. E que tal uma canja de pato no final de uma festa regada a vinho da melhor qualidade?

Foto: Regina Bui

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Um pé de mexerica quase no meu quintal

O vizinho de fundo tem um pomar repleto de espécies diversas e, no final do interminável terreno, um pé de mexerica bisbilhotando no meu muro. A árvore, posso chamá-la de generosa ou intrometida, como alguém que se apóia com a ponta dos pés do lado de lá e se joga debruçada a me observar, do lado de cá – o que seria muita pretensão minha.
De vez em quando eu puxo uma folha e amasso o cheiro dela nas mãos, e não sei se por vingança ou birra, fixa aquele perfume na pele de um jeito que me faz lembrar de sua personalidade cítrica durante horas a fio.
A culinária é uma parceria. Os ingredientes entram com sua riqueza de sabor, cor e textura. E cabe a nós, meros dependentes, explorarmos essas divindades – o nosso maná - com o talento e os sentidos do olfato, paladar, tato e visão. Audição também, como descreveu Nina Horta em sua coluna sobre os sons das panelas e suas ebulições.
Quando a árvore deu frutos, alaranjados como o sol poente, imaginei que da polpa poderia ser feito um tacho de compota de mexerica caipira e de sua casca, lascas confitadas e crispadas para acompanhar um cafezinho passado na hora ou ainda, para decorar uma mousse de capuccino com chocolate branco.

Foto: Regina Bui

terça-feira, 12 de maio de 2009

Da naftalina ao microchip



Tudo na vida é repaginado. A cozinha também não escapa do movimento involuntário do universo.
No quartinho das bagunças estava revirando o baú, literalmente, e revendo livros e revistas antigas de cozinha - essas coisas que a gente ganha de tias-avós – com receitas dos anos 60. Achei um fichário em forma de mini arquivo com uns 200 pratos, todos ilustrados com fotos.
Lembra de quando strogonoff era super chique? Hoje ele reveza com o picadinho das terças-feiras. Mas continua gostoso. E galantine? Ninguém mais ouve falar. Assim como: fricassé, terrina, escabeche, civet, tournedos. Pratos a la: Provençal, Jardineira, Marengo, Normanda. Molhos: Rosé, Bourguignonne, Bérnaise, Bordellaise, Madeira. E as sopas? Parmentier, Vichyssoise. Saladas Russa e Niçoise. E sobremesas de nomes desaparecidos, como: Charlote, Diplomata de Frutas, Delícias de Côco, Surpresa de Laranja, Zabaione, Arroz Doce à Imperatriz, um pãozinho chamado Maravilhas e o conhecido Flan de alguma coisa.
E ainda outras receitas estranhas, tipo: Schenkelé, Bortsch e Pirojki. Pi o quê?
Fotos super produzidas para a época, mas nem um pouco apetitosas nos dias de hoje.
Muito bem. No mesmo dia, visitei um amigo aqui de férias, o João, que trabalha há um ano e meio com o chef Jorge Breton, em Valência, Espanha.
Quando João abriu seu laptop e me mostrou as fotos da cozinha-hi.tech-contemporânea-espanhola-fusion-ultramoderna toda em inox, só pude dizer:
- CaaaRaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaCaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
Nem panelas normais esses caras usam! Boca de fogo, só havia duas, para as reduções mais brutas. Resumindo, o resto dos alimentos são processados e cozidos em equipamentos digitalizados, cuja temperatura é totalmente controlada em tempo integral. Até as chapas são elétricas. Existe um banho-maria, por exemplo, usado para amornar um azeite durante horas com algum outro ingrediente, com a finalidade de aromatizá-lo. Uma outra maquineta a vácuo, que transforma sabores e texturas, pode fazer com que um pedaço de melão tenha gosto de maçã verde. E esses cozinheiros-cientistas fazem também cápsulas cheias de algum líquido e que estouram na boca. E coisas além de gelatinas e espumas.
Os pratos viram verdadeiras obras de arte, super coloridos e clean, às vezes com ingredientes não identificáveis, que depois você descobre ser uma fatia de nabo. E quer agradem ou não nosso paladar, ou, por mais que tentemos preservar a comida da vovó feita no fogão de lenha, daqui uns 50 anos teremos as engenhocas acima como eletrodomésticos em casa, comprados pela Polishop. Pode escrever!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Pesquisa de botequim

A maioria das mulheres se acha bonita e gostosa. As gordas e as magras.
A maioria das mulheres de acha gorda. As gordas e as magras.
A maioria das mulheres se apóia na teoria da relatividade. Não a do Einstein, mas a consoladora: “em comparação àquela ali, estou muuuuuuuito melhor...”

domingo, 10 de maio de 2009

O garçom premiado

Foi num restaurante carioca, de renome internacional e localizado na praia mais famosa do mundo. Depois de estudar o cardápio, pedi trilha de entrada, um peixe de pele vermelha, carnudo e super saboroso. Assim que o prato chegou, aquele odor forte de amoníaco invadiu minhas narinas. Chamei o garçom e disse, na maior calma, que os peixinhos não estavam bons. Na maior calma porque, afinal de contas, tenho que relevar: um chef pode ser estrelado, mas é possível que uma vez ou outra ajudantes desatentos façam cagadas. Quando concordei em trocar o prato, o garçom, muito atencioso e com um ar introspectivo, soltou:
- Engraçado, a senhorita não é a primeira pessoa que reclama desse peixe...
Você acha, sensível leitor, que esse garçom merece o prêmio de:
- ANTA DO ANO,
- QUEIMEI A REPUTAÇÃO DO CHEF ou
- EU ACREDITO NA INGENUIDADE

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Domingo é dia das Santas!


Quer animar a data com estilo trash?
Receita do Macarrão Travekinha!












Foto: Regina Bui


terça-feira, 5 de maio de 2009

Crianças à mesa

Criança é difícil. Julga o sabor da comida pelo visual e quando encasqueta, não quer saber de experimentar, nem pela promessa do presente dos sonhos em troca. Se bate o olho e vê alguma coisa que não agrada, vai logo apontando: “não quero aquilo ali porque tem uns verdinhos” ou, “não gosto daquelas bolinhas.”
O nosso único e inútil argumento é:
- Mas você nem experimentou!
Já peguei as manhas do que servir e de como servir no Anglo Gourmet, um almoço que acontece todas as quintas para os baixinhos, na cantina do colégio.
Os molhos, por exemplo, não podem ter pedaços de nada. Ervas picadinhas são perigosas. Carnes muito escuras nem pensar. Legumes diferentes são suspeitos. Tudo deve ser colorido, mas clean. E o prato tem que ter cara de playground. Não me pergunte como, mas tem!
Outro dia um garotinho não queria comer uma saladinha de batatas, lindinha, milimetricamente cortadas em cubinhos do mesmo tamanho.
- E se isso fosse um picolé, você não experimentaria pra ver se é bom? – perguntei, com as mãos na cintura.
Ele respondeu o óbvio:
- Mas TODOS os picolés são gostosos, tia!

Foto: Regina Bui

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O gordo feliz

Era um gordo solitário, porém feliz e satisfeito, indiferente com a própria anatomia, ao contrário do que pensavam as mulheres por quem na vida se apaixonou. Como não tinha família, aperfeiçoou-se dos ofícios da cozinha.
Começava a pequena refeição na madrugada, pelo sonambulismo programado. Um beliscãozinho no pudim de pão, uma fatia de queijo branco, uma colherada de mousse de goiaba.
Às seis e meia o ritual parecia tão complexo quanto o almoço dominical: bolo de araruta, geléia de damasco, cereais com leite, suco de melancia, torradinhas, manteiga, ovos quentes, salada de frutas, panqueca com mel e café com chantilly.
Às dez da manhã era hora do misto quente de três andares, com presunto parma e queijo holandês, seus preferidos, suco de laranja e um capuccino duplo.
No almoço ou no jantar, pratos dos mais tentadores e elaborados fazia: molhos com funghi, aspargos, vinho do Porto, cogumelos frescos, frutos do mar, ensopados diversos e assados suntuosos. Durante a tarde preparava fornadas de pães, tortas e bolos para a manhã seguinte.
Um dia recebeu a ligação do síndico do prédio onde morava, que desabafou:
- Seu Tadeu, os moradores sempre reclamam do senhor. É um tal de cheiro bom invadindo os apartamentos e provocando todo mundo! A madame do 35 diz que o filho não consegue estudar. A velhota do 51 falou que a pensão do marido não paga nem metade das vontades que passa. O cãozinho do 23 não come mais ração. E quando o senhor prepara empadão de bacalhau, o pessoal todo se revolta! O pior é que eu não posso nem lhe multar, afinal de contas, o senhor não está fazendo nada de errado.O gordo nem deu bola pra galera, mas ficou penalizado com o Totó, que não comia mais. Depois disso, mandava descer todo dia um mimo para o cãozito: tutu de linguiça, bolo de carne moída, risoto de moelas, kibe de frango, pasteis de costelinha, lombinho à milanesa...
Passado um tempo, o síndico por telefone, de novo:
- A velhota do 51 pediu pra lhe avisar que não consegue mais comer ração!

Foto: Regina Bui