DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Qual é o gosto do sabor?

No filme Cidade dos Anjos, o anjo apaixonado observa sua amada degustar uma pêra e pergunta a ela qual o gosto da fruta. Como definir um sabor? Fazer comparações parece ser um tanto limitado – e um grande desafio para quem escreve também: doce, ácido/azedo, salgado, amargo. E a consistência? Crocante, mole/macia/gelatinosa/cremosa, dura, pegajosa.
Sábado estive no Mercado Municipal de São Paulo e deliciei-me por lá, como sempre. Mangostim, pitaia, granadilha, frutas incomuns no nosso cotidiano – pelo menos por enquanto – e, apesar de serem adocicadas como todas, são tão, tão diferentes umas das outras. Como acreditar que Deus privou os anjos de conhecer as delícias desta Terra?
A granadilha é uma fruta colombiana, um maracujá menor, sem acidez nenhuma e bastante doce. Essa foi fácil.
Servi-me também de ostras gigantes, geladíssimas com limão taiti, da banca de frutos do mar, tudo fresquinho. Era só fechar os olhos que você ouvia o barulho das ondas e o cheiro do vento salgado no ar, mesmo com aquele bando de gente se espremendo no balcão. Ondas, vento salgado... muito clichê? Vou tentar de novo. O molusco traduziu, no momento em que ingeri, a sensação da força e dos mistérios das marés e me remeteu através do paladar, àquela atmosfera quente, úmida e salgada que só os ventos litorâneos são capazes de carregar e nos entorpecer por completo.
Na banca de carnes exóticas do corredor ao lado, encontrei pacotes de quilo de línguas congeladas de pato. Duas coisas nos deixam curiosos diante dessas esquisitices: consistência e sabor. A terceira, como conseqüência, é o modo de preparo. Perguntei à vendedora se havia algum segredo:
- Olha, trabalho aqui a vida inteira, mas a chinesada não entrega o ouro.
E agora como o anjo queremos saber que gosto tem língua de pato. Ou não?

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Baudelaire, Savarin e o vinho

Em seu ensaio "Do Vinho e do Haxixe", Baudelaire ironiza:

Um homem muito célebre, que era ao mesmo tempo um grande tolo – coisas que andam muito bem juntas, ao que parece, como mais de uma vez terei, sem dúvida, o doloroso prazer de demonstrar – ousou, num livro sobre os prazeres da Mesa, composto do duplo ponto de vista da higiene e da satisfação, escrever o que se segue no artigo VINHO: "O patriarca Noé passa por ser o inventor do vinho; é um licor que se faz com o fruto da vinha."
E que mais? Mais nada: é tudo. Por mais que folheeis o volume, que o vireis em todos os sentidos, que o tenteis ler de trás pra adiante, de costas, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, nada mais encontrareis sobre o vinho na Fisiologia do Gosto do ilustríssimo e respeitadíssimo Brillat-Savarin senão que: "O Patriarca Noé..." e "é um licor..."
Suponho um habitante da Lua ou de qualquer planeta afastado, que, viajando pelo nosso mundo e cansado das suas longas jornadas, pense em refrescar o palato e aquecer o estômago. Quer pôr-se ao corrente dos prazeres e dos costumes da nossa terra. Ouviu vagamente falar de licores deliciosos com os quais os cidadãos desta esfera conseguiram, à sua vontade, coragem e alegria. Para estar mais certo da escolha, o habitante da Lua abre o oráculo do gosto, o célebre e infalível Brillat-Savarin, e ali encontra, no artigo VINHO, esta informação preciosa: O Patriarca Noé... e esse licor se faz... Absolutamente digestivo. Muito explicativo. É impossível, depois de ter lido esta frase, não ter uma idéia justa e clara de todos os vinhos das suas diferentes qualidades, dos seus inconvenientes, da força que exerce sobre o estômago e o cérebro.
Ah! caros amigos, não leiais Brillat-Savarin. Deus preserve de leituras inúteis àqueles a quem ama, é a primeira máxima de um livrinho de Lavater, um filósofo que amou os homens mais do que todos os magistrados do mundo antigo e moderno. Nenhum bolo foi batizado com o nome de Lavater; mas a memória deste home angélico viverá ainda entre os cristãos, quando até os bons burgueses já tiverem esquecido o Brillat-Savarin, espécie de brioche insípido cujo menor defeito é servir de pretexto a uma tagarelice de máximas totalmente pedantes, tiradas da famosa obra-prima.

Após o desabafo e a lavada de Baudelaire, veio o desafio. E existe algo mais para escrever sobre o vinho, depois do texto abaixo? Incansável, o poeta prossegue:

Parece-me por vezes que ouço dizer o vinho: - Ele fala com sua alma, com essa voz dos espíritos que só pelos espíritos é ouvida. – "Homem, meu bem-amado, quero lançar para ti, apesar da minha prisão de vidro e dos meus ferrolhos de cortiça, um canto cheio de alegria e de esperança. Não sou ingrato; sei que te devo a vida. Sei o que te custou de trabalho e de sol nas costas. Tu deste-me a vida, eu te recompensarei. Pagar-te-ei largamente a minha dívida; porque eu sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta sedenta pelo trabalho. O peito de um bom homem é uma morada que me agrada muito mais do que estas caves melancólicas e insensíveis. É um alegre túmulo onde cumpro o meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande reboliço, e dali, por escadas invisíveis, subo-lhe ao cérebro onde executo a minha dança suprema."
"Ouves tu agitarem-se em mim as poderosas canções dos tempos antigos, os cantos do amor e da glória? Sou a alma da pátria, meio galante, meio militar. Sou a esperança dos domingos. O trabalho faz os dias prósperos, o vinho faz os domingos felizes. Com os cotovelos assentes na mesa de família e as mangas arregaçadas, tu me glorificarás altivamente e estarás verdadeiramente contente."
"Iluminarei os olhos da tua velha mulher, a velha companheira dos teus desgostos quotidianos e das tuas mais velhas esperanças. Enternecerei o seu olhar e porei no fundo das suas pupilas o fogo da juventude. E ao teu filho, palidozinho, esse pobre burrico atrelado à mesma fadiga que o cavalo da charrua, dar-lhe-ei de volta as belas cores de seu berço, e serei para esse novo atleta da vida o óleo que reforça os músculos dos antigos lutadores."
"Cairei no fundo do teu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o sulco dolorosamente lavrado. A nossa íntima reunião criará a poesia. Nós dois faremos um Deus, e voaremos para o infinito, como os pássaros, as borboletas, os fios da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas."

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pasteis de feira

Até quem tem sangue azul aprecia um pastel de barraquinha. Talvez os de sangue azul cintilante nunca tenham pisado numa feira. Não sabem o que perdem. O cheiro quente dos pastéis nos agarra pelo pescoço como cabo de guarda-chuva sem piedade nem dó e o pior é que são irreproduzíveis em casa. Não tem o mesmo gosto, nem a mesma crocância, nem nada. E aquele vinagretinho caseiro que acompanha? Aí mesmo que eu queria chegar. Na verdade não existe coisa mais anti-higiênica. E não tenho razão? Todo mundo enfia a colher dentro do seu pastel mordido e depois coloca no vinagrete de volta. O freguês do lado faz a mesma coisa. Fazer o quê? Vista grossa ou pastel sem emoção.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Doces momentos

E o que dizer de dois aniversários em família durante o feriado nacional? Começou na sexta. No jantar, filé de San Peter assado na folha de alho-poró e tomilho pra soltar um cheiro, seguido de sopa de palmito com cubinhos de mussarela e queijo parmesão ralado.
No sábado à noite, patê de ervas frescas (cheiro verde, alecrim, manjericão e sálvia), pão italiano, batatinhas cozidas com casca, temperadas com muita páprica picante, azeite, um pouco de balsâmico e açúcar mascavo e por fim um creme quente de três abóboras (moranga, cabochan e paulista) com pedaços de gorgonzola para quebrar o friozinho que veio com a chuva.
No domingo o almoço foi à base de berinjela fria curtida no vinagrete, frango aberto braseado, arroz com alho queimadinho e farofa amarela úmida, daquelas bem acompanhadas de bacon, ovos, coentro e tudo mais que tinha de direito.
E na segunda, quando o sol decidiu aparecer caloroso como sempre, o sabor de comida da vovó permaneceu: feijão branco ensopado com linguiças defumadas e lombo de porco salgado, acompanhados pelo fiel e incansável arroz branco soltinho de tudo.
Eu queria crer que a vida é como cozinha: simples de tudo. Basta saber salgar.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Bichos, bichinhos e bichões

Oi, oi, estou de volta depois de um curto período de adaptações. E a sensação de alívio com tanta tralha jogada fora, coisa que acontece quando as portas dos armários não fecham mais ou quando você muda de casa.
Meu novo lar fica num condomínio de mini chácaras, no meio da natureza, com ruas de terra, a 20 minutos do centro da cidade – essa é a vantagem de morar no interior.
Agora tenho limão-vinagre diretamente do pé, acerola, jabuticaba e seriguela, se é que a árvore um pouco sofrida e muito podada arrumar forças para dar os frutos em sua época. Tem rede na varanda e no lugar de muros altos e fechados, alambrados com cercas vivas separando um terreno do outro.
E não é nada difícil se acostumar aos novos barulhos daqui: galinhas d'angola, grilos, corujas, sapos, espécies diferentes de pássaros que soltam alguns pios inclusive a noite e outros sons inimagináveis. Uma certa madrugada acordei com um barulho forte de pancada abafada na terra seca e os cães que latiam loucamente me fizeram levantar. Olhei pela janela da frente e vi um cavalo marrom andando meio cabisbaixo e pensativo, sem dar a mínima para quem o estranhava, no caso eu e meus cachorros.
Depois percebi que esse trânsito de animais soltos é comum por aqui, pois um boi branco, daqueles de cupim bem alto, passou despreocupado em pleno fim de tarde, vindo não sei de que lugar e indo sabe-se Deus para onde. São treinados? Trabalham por conta? Fugiram de algum sítio ou apenas vivem a vida como bem entendem?
Tenho que me familiarizar com esse mundo totalmente oposto do universo urbano para não me sentir uma caipira.
A natureza impõe um respeito tão grande que você sente dó de jogar Rodiasol em pernilongo. Espero ter muitas histórias boas para contar.