DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

domingo, 27 de abril de 2008

O tripeiro


Caro leitor blogueiro, prepare-se para fortes emoções. Nas próximas linhas falarei sobre comida de uma maneira nada glamourosa, portanto, retirem-se da sala os fracos de estômago (que nem bem-aventurados serão no reino dos céus).
Dois episódios marcaram minha preferência pela profissão, logo na infância. O primeiro foi quando misturei tomate com açúcar e experimentei... nada bom.
O segundo foi quando conheci o tripeiro, cujo nome faz lembrar o “peleiro”, vilão que trabalhava para Cruela Devil no filme 101 Dálmatas. Até que o ofício dos dois tem lá suas semelhanças.
Passando férias na casa da madrinha, tive contato com um açougueiro ambulante que vendia de porta em porta, vísceras e partes menos nobres de bovinos, aves e suínos. Tudo para uma boa rabada com agrião, dobradinha no dendê, coração refogado com cebolinha ou picadinho de língua com tomate e alho. Os miúdos vinham numa caixa engenhosamente fabricada e toda forrada de inox. Em seu interior havia barras de gelo que garantiam a preservação das carnes. E sua porta frontal, quando aberta, virava um pequeno balcão de trabalho. E pasme, caro leitor blogueiro: a geladeirinha artesanal era puxada por uma carroça. Ninguém falava em Vigilância Sanitária nos anos 70, mas os moradores do bairro conheciam muito bem o trabalho do prestativo tripeiro, criador dos animais e sitiante da região. Ele passava uma ou duas vezes por semana trazendo tudo limpo, e assim, conheci de perto o cheiro de sangue fresco e de carne crua.
Impossível não querer meter as mãos em miolos ou em barrigada de peixe e cabeça de camarão na profissão de cozinheiro - e haja mãos! Estas devem trabalhar no preparo de uma comida com tanta intimidade e prazer como o olfato tem em garantir a legitimidade dos ingredientes e o paladar em provar os temperos finais. Está tudo inserido no mesmo saco.
A madrinha, junto com minha avó Maria, transformavam qualquer coisa que comprassem do tripeiro em sabor e cheiro inesquecíveis (de bom, diga-se de passagem).
Mas inesquecível mesmo era a figura do tripeiro. Um senhor barrigudo, grisalho, moreno e judiado pelo sol, bigodinho e chapéu de abas largas – como o do peleiro.


Foto: Regina Bui

domingo, 20 de abril de 2008

O doce de cravo

Minha mãe sempre ganhava de uma vizinha um vidro com doce de abóbora em calda, ainda morno, feito na hora. Relutava em saboreá-lo, porque já conhecia a fórmula e o gosto, só de sentir o aroma. Havia um problema no doce de abóbora: tinha tantos cravos que o forte sabor encobria a leveza adocicada da grande senhora da terra. Como alertar a bondosa vizinha que o doce não parecia de abóbora, mas de cravos? Então eram dois os problemas.
Mas numa conversa de portão tudo foi resolvido. A vizinha agradecida confessou que enchia a mão de cravos para ferver com o doce e não se dava conta de quanto um hábito equivocado comprometia o resultado final. Fazemos muitas coisas na cozinha por hábito, mas sem razão. Óleo na água da massa, coentro demais como tempero, tomates levados à boca do fogão, folhas de salsão em exagero numa sopa.
A receita do doce era fácil; o feitio, automático, e essa falsa segurança cegava o paladar que, como conseqüência disso, era dispensado. Bem, o doce finalmente passou a ser de abóbora, com poucas unidades de cravo que o enfeitavam com discrição e cumpriam honestamente o seu papel.

Corações congelados

De frango mesmo. Comprei um 1 kilo para fazer uma farofa de miúdos. Coração, moela e fígado refogados na manteiga, alho, cebola, cheiro verde e farinha de milho em flocos. Esse texto é para quem gosta do estilo caseirinho de comer. Aliás, comecei a descrever a refeição pelo acompanhamento. Farofa é um acompanhamento. Mas na comida caseira, em minha modesta opinião, não tem estrela principal e coadjuvantes. Todos os itens que compõe uma mesa, em suas travessas, são importantes e fundamentais. Estão no mesmo nível, no mesmo patamar. O bolinho de mandioca, a salada de palmito, o ovo frito com folhas de mostarda, o arroz, o tutu, o ensopadinho de ervilhas tortas, o peixe de rio assado na telha, o purê de batata-doce. É de derreter corações.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Clarice é Clarice


A Repartição dos Pães


Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior. Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos. Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós... Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos. A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe. Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa. Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos. (Clarice Lispector)

Foto: Regina Bui

sexta-feira, 11 de abril de 2008

E no dia do Juízo Final...

Das sete filas, a do Pecado da Gula é a mais animada. Obesos, vítimas do colesterol, alguns alcoólatras e seus médicos se reencontram com alegria. Gastrônomos, enólogos, glutões e os padres que os perdoaram também. Os advogados não sabem se a acusação se deve ao exagero da quantidade de comilanças ou ao extasiante prazer da degustação. Os músicos compõe já os primeiros acordes de uma “sonata para um banquete celestial.” Na recepção, a placa trazida por alguém: “BEM-VINDOS À NOVA CONFRARIA”. Os gourmets esperam com expectativa pelas novas instalações e não entendem direito por que é que precisam esperar por uma sentença. Céu ou inferno, seja onde for, há de ter uma cozinha! Ninguém se sente envergonhado ou arrependido em fazer parte desta fila. Aliás, a questão é: por que é que estão ali entre as filas da Inveja e da Ira? Por que é que os equiparam com aquelas figuras cabisbaixas e amargas? A dúvida pairava entre os ansiosos comensais. Tocada a trombeta, é chegada a hora dos pecadores da fila da Gula, última a ser chamada. Todos silenciam, se organizam, apagam os charutos e ajeitam suas malas.
Deus aparece em seu trono, resplandecente, como a luz da alvorada.
O primeiro da fila, com muita cautela, ousa perguntar:
- Senhor, faremos nós também, a multiplicação dos pães? Transformaremos água em vinho?
- Certamente! E não teriam outra opção, pois, o Diabo rejeitou vocês, e agora só há vagas na cozinha mesmo.

domingo, 6 de abril de 2008

A arte de brindar

E para comemorar meu aniversário, fiz para a família uma caldeirada, mas um pouco mais delicada do que de costume. Com vinho branco, caldo de legumes, azeite de oliva extra-virgem, tomate refogado com pouco alho, tomilho, alecrim, pescada branca sem espinhos, camarão rosa médio, vôngole, mariscos e tentáculos de lula. Tão leve que poderia ser servida como sopa ao invés de acompanhar arroz e batatas. Na hora do brinde, num momento relâmpago de reflexão, aquela sensação de me sentir mais livre, mais segura e mais feliz pelos preciosos anos de experiência, coisa que dinheiro algum compra. Tive um impulso repentino para discursar sobre isso, mas o que saiu de repente de minha garganta foi: "tim tim, e cada um que vá procurar sua turma!..."