DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sexta-feira, 28 de março de 2008

A vida é agridoce


Reflexões dos quase quarenta. Deixei passar uns dias para escrever. Falar a respeito da vida no dia do aniversário é um pouco arriscado, tem uma tendência de chegarmos a conclusões exageradas. Às vezes pra mais, às vezes pra menos.
Passados esses dias, só consegui pensar a vida em termos de consistência, cheiro, cor e sabor.
A consistência: como uma espuma. Não é sólida, embora muitos achem que o controle de tudo assim a faz. Não é líquida porque não temos a capacidade de represá-la por muito tempo. Líquido parado estraga. E, se a vida for líquida e não represada, ela passa como um rio? Acho isso muito vago. Gosto da espuma porque representa esse meio termo e também expectativa, e pode inclusive evaporar de uma hora para outra.
O cheiro: a vida pode ter cheiro de coisas mortas e de coisas frescas ao mesmo tempo, como nossas células que nascem e morrem a cada dia. É preciso apurar muito bem o olfato e escolher o aroma que mais lhe agrada, sem o engano de sentir o perfume das coisas mortas e achar diariamente que isso é vida.
A cor: essa é a mais difícil de definir, mas está diretamente relacionada ao cheiro. Se quiser sentir o cheiro das coisas frescas todos os dias, verá as cores mais suaves ou alegres que existem. Caso contrário, os dias serão solidamente obscuros e desagradáveis, e deixarão a vida se esvair, como líquido nas mãos.
E o sabor: tenho certeza, não é tão amargo assim, nem muito salgado e nem melado demais. A vida tem sua doçura e sua acidez, portanto, é agridoce - como vinagre com açúcar. E como é irônica essa vida também, escolheu a dedo justamente esses ingredientes que quando combinados, nos provoca arrepio ou água na boca.


Foto: Regina Bui

domingo, 23 de março de 2008

Um conto de Felicitylândia Town

Era uma vez uma província longínqua chamada Felicitylândia Town. No banquete feito para o memorial de trezentos anos de morte do último rei a ocupar o trono, a soberba orquestra tocava afinada para a ex-família imperial, e também para os felicitylandeses mais importantes. Todos chegaram pontuais e eufóricos, pois o último grande evento acontecera há cinco décadas, no banquete do memorial de 250 anos de morte do mesmo rei.
Na hora do jantar, foram servidos de entrada caldos mornos em seqüência: o de aspargos frescos, o de tomilho e o de tomates-do-campo. Por debaixo da mesa, viam-se os pés das mulheres de 40 a 50 anos, caracterizados como ditava a moda elitista, com sapatos laranja-adamascados e fivelas acobreadas, assim como os homens, que seguiam tudo à risca, com seus mocassins de pontas falicamente empinadas, em tom beterraba-da-terra. Algumas mulheres deixavam de sentir o sabor da comida e dos instrumentos musicais, por estarem descontentes com o peso, com o suor em demasia, com o perfume vencido ou com o tamanho das joanetes. Outras distraíam-se entre as colheradas, observando seus homens de sobrancelhas levantadas discutirem os problemas de arbitragem do último campeonato de críquete.
O prato seguinte foi uma salada de hortaliças crocantes de duas cores, e queijo brie assado, coberto com sálvia e mel. À mesa, identificavam-se com facilidade as moças com idade entre 14 e 21 anos, cujos cabelos pareciam sair da mesma revista, de mesmo corte e cor, sendo levados de um lado e de outro na hora de ajeitar o penteado, como num movimento meigo e sincronizado entre elas. Uma ou outra moça estava infeliz com o resultado da cirurgia plástica dos seios, e não percebeu, portanto, a harmonia dos temperos e do oboé. Outras ainda, não satisfeitas com seus narizes, orelhas ou unhas, fixavam o olhar num horizonte imaginável, suspirando por romances impossíveis de finais felizes.
O próximo prato adiantou-se pelo seu aroma antes mesmo de chegar à mesa. Um magret de pato em emulsão de framboesas e zimbro fazia com que as camisas douradas-mico-leão dos rapazes de 20 a 30 anos se destacassem em contraste com a cor do molho. Alguns deles se irritavam quando percebiam que avaliavam seus bíceps, um pouco inferiores ao tamanho ideal, e deixavam assim de desfrutar o prazer do paladar e do violoncelo, enquanto outros se ocupavam em contar quantas das meninas poderiam se encaixar no gabarito imposto pela exigente e criteriosa sociedade felicitycense.
O último prato chegou como num desfile nas mãos dos serviçais. Em fila, colocaram-no delicadamente à frente dos convidados, que administravam suas posturas de etiqueta. As trouxinhas de massa fresca recheadas com cogumelos do bosque e manteiga de salmão soltavam um leve vapor e encontravam-se na atmosfera festiva com as notas dos violinos. Os senhores de 60 ou 70 anos destrinchavam os casos de doença na conversa e limpavam a boca com os guardanapos de pano, que logo voltavam sobre suas coxas, vestidas com calças azul-divino de micro-matelassé. As senhoras, com todas as jóias de herança de família que lhes cabiam no corpo e chateadas com suas invencíveis rugas, queixavam-se umas com as outras sobre a incompetência de suas faxineiras, enquanto os segredos do prato se perdiam, com a doce melodia.
De sobremesa, sorbet de mirtilo e licor de pêra a vontade, motivo de sobra para lamber os dedos, se o protocolo permitisse.
Fim do jantar. Pratos retirados, maestro concentrado. Hora da homenagem, da memória, das fotos para a coluna social, do discurso, da emoção e do bolo. Ao final, todos aplaudiram lisonjeados e sorridentes e abraçaram-se inflamados e entupidos dos vinhos da melhor espécie. Depois disso, voltaram para suas casas felizes e orgulhosos, previsivelmente fazendo do evento o assunto das próximas cinco décadas.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Verdades sobre o bacalhau


Afinal de contas de onde vem? Da Noruega? Do Porto? Já vi até trairão do Mato Grosso ser chamado de bacalhau. Existe também o bacalhau fresco, um peixe menor, encontrado nas feiras. Não é desses que estamos falando.
Quatro tipos de pescados em mares que banham as costas da Noruega, Dinamarca, Islândia e Groenlândia vão para Portugal, onde se submetem ao processo de limpeza e conservação, tornando-se salgados e secos.
Os mais conhecidos são o COD, também chamado bacalhau do Porto ou imperial; o SAITHE, menor, mais fino e de carne escura; o LING, chegando a quase 2 metros de comprimento e o ZARBO, o mais barato de todos. Obviamente existem pescados de outras partes do mundo assim como diferentes países que o transformam em bacalhau, mas os famosos, só para esclarecer, são esses.
FONTE: Revista Gula


Foto: Regina Bui

quarta-feira, 19 de março de 2008

Valores, conceitos, canastrices e opiniões

Todo mundo se acha bem dono da palavra, a começar por mim. Pergunte a trezentas pessoas se Adão tinha umbigo e ouvirá trezentas verdades incontestáveis ou trezentas mentiras absolutas.
Educação, valores, profissões, opiniões. Os chefs podem tudo. Um chef de cozinha pode decidir, de uma hora pra outra, que baba de quiabo é chique, assim como um estilista mistura xadrez com bolinhas na mesma peça de roupa, e nova moda está lançada.
Veja você que em São Paulo, um estrelado chef francês foi chamado na mesa por um cliente muito famoso, publicitário, que fez o seguinte pedido: sei que essa opção não consta do cardápio, mas quero um ovo frito feito especialmente por você! O chef irritado, respondeu subitamente, com seu sotaque arrastado e de maneira muito seca: ovo frrrito tem lá no botecô da esquina, não aqui no meu restorrrante! E em seguida retirou-se.
Num outro bistrô não muito longe dali, havia no menu, assinado também por um francês de capa de revista, foie gras com ovo frito e lascas de trufa negra. E o prato custava R$ 120,00.

segunda-feira, 17 de março de 2008

De Cronópios e de Famas

Em homenagem a Julio Cortázar uma historinha de coração:

Em uma festa junina, cronópios dançavam a quadrilha da catala enquanto outros ocupavam as barraquinhas e suas atrações. A primeira era de caldinho de feijão e numa plaquinha dizia: CALDINHO DE GRAÇA. A segunda era de cocada com amêndoas e na placa dizia: AQUI, COCADA DE GRAÇA. A terceira era de beijos e dizia: BEIJOS DE GRAÇA. A quarta barraquinha era de beliscão, e na placa, um preço: 2 REAIS. Um fama, aproximando-se, perguntou ao cronópio que ocupava o balcão: quem você acha que pagaria para levar beliscões? O cronópio respondeu: de alicate ou de pregador?

quinta-feira, 13 de março de 2008

Quando o amargo não está na boca


Mas como escrever sobre depressão num blog de comidas? No divã espera-se que tudo seja permitido e a cozinha em funcionamento é um lugar tão descontraído para confissões como o próprio sofá-cama, acredite. Tentarei ser doce como o cheiro do endro.
O assunto depressão, além de incomodar, é tabu, como sexo nos tempos da vovó. Para os que não têm idéia do que seja, um livro interessante é O Demônio do Meio-dia, de Andrew Solomon. De tantos depoimentos e informações técnicas sobre a questão, chega realmente incomodar os incomodados que não pretendem se mudar, e acham que conselho bom é aquele do tipo: levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, ou: isso é frescura, vai trabalhar que passa! Esses conselhos, tão apetitosos e digestivos como mousse de ossobuco com jatobá, levam qualquer paciente em recuperação ao enforcamento. São tão desnecessários como papa de cebola crua com alho para recém-nascidos, ainda que tenha um pouco de mel (essa é uma receitinha alternativa para auxiliar a doença do século: cebola, alho e mel batidos no liquidificador, sendo três partes de cebola com alho e uma de mel).
E que venha a fluoxetina, porque quem não viu os dias sem cor, não perdeu o apetite pela vida, não sentiu areia movediça sob os pés e cimento no lugar das botas ou pensou a morte como solução prazerosa, não sabe que gosto isso tem. O silêncio da ignorância vale mais do que qualquer palavra equivocada dirigida a alguém que sofre desse mal. Vivemos num mundo onde um quer explicar melhor do que outro - entender não é tão importante assim.

Foto: Regina Bui

sábado, 8 de março de 2008

Muita psicologia nessa hora

Passei algumas horas cuidando do filho de uma amiga e virei mãe por um dia. Precisava fazer o almoço e levá-lo na escola. Preparava lentilhas com lingüiça calabresa e alecrim, arroz branco, molho para a salada, quando me toquei: e se ele não gostar?
Lembrei-me de quando tinha 13 anos e estava na casa de uma colega. Detestava abobrinha na época. Na verdade nunca havia provado, mas era insuportável, eu me lembro, e não havia nenhum motivo para descobrir se esse estranho legume era saboroso ou não. Sua aparência simplesmente não me agradava. Mas adivinhem o que tinha para o jantar naquela noite? Abobrinha. Outras coisas acompanhavam a refeição, como carne, suflê, verduras. Mas no prato que fizeram para mim, ela crescia lentamente, quanto mais eu demorasse a provar. Nem pensava em deixá-la como sobra, achava falta de educação. Imagine: ingrediente non grato, comida non grata e consequentemente persona convidada non grata. Até que chegou o momento e eu tive que comer abobrinha pela primeira vez. E não é que era boa? Refogada na cebola e no alho com azeite de oliva extra-virgem, super al dente e um leve sal.
Agora estava eu fazendo o outro papel, com uma inocente vítima na minha frente. Perguntei pro Gabriel se gostava de lentilhas. Ele respondeu: “Não sei, não me lembro de ter comido antes...” Ai, ai, ai. Bem, já estava pensando num plano B, numa massa com o infalível molho de tomates ou algum coringa de geladeira. Mas não é que o menino gostou e repetiu?
Passei 37 anos detestando melancia. Achava que tinha cheiro de maria-fedida, aquele bichinho inesquecível. No último verão me entreguei, diante de uma jarra de suco bem gelado: achei que já estava na hora que quebrar o desencanto. Foi mais fácil gostar de jiló do que de melancia, mas acabei tomando três copos.
O sabor dos alimentos varia muito de acordo com o seu modo de preparo e a preferência é bem pessoal. Por exemplo, quiabo me agrada mais quando é frito, bem sequinho, e não cozido. Pepino, o primo da melancia, só se for japonês e agridoce. Já vi alunos se rendendo a bacalhau, repolho, frutos do mar, grão-de-bico, porque ao provarem novas receitas, quebraram uma impressão negativa que ficou no passado.
Nossa relação com os sabores tem uma história. E, como toda história, pode até mesmo ter um final feliz: basta abrir a mente, e a boca.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Sabores divinos e celestiais

Qual seria o prato preferido de Deus? Sendo generoso, cedeu-nos os sentidos, permitindo com que apreciemos os sabores e aromas contidos nos alimentos e o dom para provarmos as infinitas possibilidades de suas combinações. Deu-nos o fogo e a água. E o livre-arbítrio para finalmente escolher a comida predileta. Nos momentos de prazer, entre as colheradas, a sensação de ouvi-lo bem de perto, com sua doce voz: “Experimente isto, minha filha, do teu prazer se fará o meu...”
Deu-nos inteligência para fabricarmos, inventarmos, colorirmos. Então surgiu o curso de Engenharia de Alimentos. Temperos de amor em forma de pó, refeições trans-legais, bebidas zero de saudáveis, embutidos enrustidos, gomas coradas, corantes saborosos, sabores mentirosos. E a doce voz novamente: “Minha filha, mantenha fora do alcance das crianças...”