DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sábado, 31 de maio de 2008

Comida de primeira, de segunda e de quinta!


Conheci um blog de duas jornalistas cujo nome, Garotas de Segunda, é um trocadilho interessante com esse velho e conhecido conceito que diz: tudo o que é quase desprezível ou de menor qualidade torna-se de segunda categoria. Não que elas sejam ou usem o blog para retalhar ainda mais o que não é valorizado, muito pelo contrário. As meninas afirmam existir “muita coisa de segunda que é de primeiríssima”, como ritmos latinos, uma balada trash, pastel de feira e um bom bife de fígado acebolado. Dizem ser vítimas de TPS (Tensão Pré-Segunda), além de se intitularem escritoras de segunda, fotógrafas de segunda, cozinheiras de segunda e assim por diante.
Confesso que fico bem feliz quando alguém revela uma percepção, ainda que intuitiva, de que algumas coisas, mesmo subestimadas, têm boas qualidades.
Nenhum alimento, seja de natureza animal ou vegetal, pode ser considerado de segunda.
Músculo de boi, se cozido na panela de pressão com vinho por quase 2 horas, derrete na boca como algodão doce e se der na louca de algum chef famoso oferecer como prato principal num restaurante parisiense, gourmets pagarão com satisfação a carne de segunda e ainda comerão de joelhos.
Eu vivo dizendo que, se fosse raríssimo encontrar galinhas que botassem ovos, estes valeriam tanto quanto valem as trufas e seriam considerados um verdadeiro “manjar dos deuses”, até crus.
Pepino, almeirão, sardinha, manjuba, jiló, mandioca, banana, rabo de boi, nada disso pode ser chamado de “comida de segunda”. Digo ser este sim um verdadeiro pecado. Se esses ingredientes caem nas mãos de quem sabe tratá-los com destreza e talento, não ficam devendo nada a ninguém. Assim como alimentos que são considerados “de primeira”, perdem seu trono num instante se mal preparados.
O que pode tornar um prato de segunda são os temperos-base que acompanham todos os nobres ingredientes da natureza. Os temperos devem ser escolhidos e misturados com cuidado, para que não mascarem o sabor das carnes, dos legumes, dos peixes, das verduras ou das frutas. Um azeite puro pode fazer de um simples maço de cambuquira com abobrinha caipira uma salada inesquecível, assim como temperos duvidosos e artificias colocam qualquer confit de canard na prateleira dos pratos de quinta categoria.

Foto: Regina Bui

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A cozinha no divã

Um dia desses minha amiga Ana Carolina questionou o nome do blog: “por que não A Cozinha no Divã, ao invés de Um Divã na Cozinha?” Olha, boa pergunta, mas não tem diferença (carne com batatas ou batatas com carne?). Existe um divã na minha cozinha para que, de vez em quando, ela se espiche nele e solte umas e outras. Aí você tem a cozinha, totalmente entregue, no divã. Esclarecido? Eu também não me convenci...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A lógica da comida

Executar receitas pelas medidas de livros e revistas é tão primitivo quanto compreender um ser humano com a seguinte descrição:

1 cabeça (com 2 olhos, 1 nariz, 1 boca e 2 orelhas e cabelos)
2 braços inteiros
1 tronco
2 pernas inteiras
Órgãos, membros, ossos, sangue
1 alma

Portanto, executar uma receita à risca chega a ser quase desumano, mas perdoável, se no final o prato ganhar uma alma com um toque divino todo seu.
Fazer doces, cujas medidas devem ser seguidas rigorosamente, é um caso à parte. Prefiro comprá-los prontos e encher a boca, sem vergonha e sem etiqueta.
Mas o desafio de cozinhar um prato começa com a elaboração dos ingredientes e sua combinação, aprovada pelo bom senso de um paladar apurado. Imagine um camarão ao molho de laranja e páprica picante. Comece pelo molho, refogando cebola e alho na manteiga. Acrescente um pouco de caldo de peixe (feito em casa), um tanto de vinho branco seco, a mesma quantidade de suco de laranja e deixe reduzir em fogo alto. Observe a consistência do molho. Muito aguado? Deixe reduzir mais. Vá colocando aos poucos a páprica e experimentando esta alquimia com o sal, um pouco de creme de leite e, colherada por colherada, chegue num sabor especial. Só seu. Essas experiências é que dão vida à receita que você faz. Os ajustes, as idéias, o feeling, a “mão”, adquiridos com a prática, são ingredientes tão importantes quanto os escolhidos para compor um simples molho, por exemplo, que tenha a sua cara. O camarão, é só fritá-lo rapidamente na manteiga e estará prontinho para levar um banho quente do seu divino molho. Só seu.

terça-feira, 20 de maio de 2008

A Arte para as Crianças


Compartilho aqui, um conto de Eduardo Galeano, do Livro dos Abraços.

Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
- Conta uma história para ela, Onélio – pediu – conta, você que é escritor...
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
- Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: “você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha”. Mas o passarinho não ouvia a mamãezinha e não abria o biquinho...
E então a menina interrompeu:
- Que passarinho de merdinha – opinou.


Foto: Regina Bui

domingo, 11 de maio de 2008

Um salmão (nada) despretensioso

Sábado de manhã, fui convidada repentinamente para um almoço em casa de estranhos (essas coisas que acontecem a todos). Prato principal: o salmão que inquisidoramente dormia na churrasqueira. Achei muito estranho, a princípio, o enorme peixe envolto no caderno cultural da Folha de S. Paulo, que delineava sua forma, amarrado bem firme com várias voltas de barbante. A aniversariante, por sua vez, me explicou que havia procurado uma receita no Google (ah, esses conselhos de internet...) e achou essa do jornal interessante, porque “fazia com que a pele, ao final do cozimento na brasa, se desprendesse da carne”.
Bem, quero com isso informar ao caro leitor blogueiro que a pele do salmão se desprende facilmente quando cozida, frita e assada, com papel alumínio ou celofane. Enfim, não há necessidade alguma de usar jornal para obter um resultado diferente na comida. E alguém garante que a tinta não libera toxinas em contato com o calor? Definitivamente não havia necessidade do jornal.
Fiquei incerta quanto ao resultado: será que iria comprometer o sabor?
Após meia hora de cada lado, encerrava seu tempo no purgatório (não que ele merecesse), então começamos a desamarrar o salmão. Estava inteiro, com rabo e cabeça, e seu interior, recheado com ervas frescas, como tomilho, sálvia e endro.
Previsivelmente, sua pele se soltava junto com a gordura das laterais, bastava empurrar delicadamente com o auxílio de um garfo.
Algumas cebolas com casca, também despretensiosas, tostavam ao lado do peixe e acima das brasas.
Mesmo tendo reprovado o uso do papel jornal, confesso que aquele salmão me deu um final feliz. As ervas frescas deixaram-no com sabor suavemente delicado e outro segredo fundamental contribuiu para o sucesso do peixe: o ponto, exato, que deixou a carne úmida e tenra, o que seria impossível se os convivas tivessem deixado o peixe desidratando no calor.
Alguém apareceu com um cuscus divino, simples e honesto, cuja maciez fez a parceria perfeita com o peixe noticioso, que poderia levar o nome de Salmone a la Otávio Frias!..

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O sabor da vida em forma de shake

Existe um shake mágico por aí, cujo treinamento de vendas lembra mais uma dessas religiões fanáticas que prometem um lugar no paraíso em poucos meses, caso você consiga muitos clientes . Acredito até que o shake faça emagrecer, afinal de contas não existe segredo para isso. Mas precisa tanta parafernália? A indústria desse shake oferece mais felicidade para quem o vende do que para quem o consome. Para quem o vende, o desejo programado de atingir metas multimilionárias, com direito a ilha particular e jatinho na porta (e o Tatu da Ilha da Fantasia recepcionando). Tolos e infelizes, porque quem ganha é uma minoria de no máximo três cabeças, como naquele sistema de pirâmides. E para quem o compra, apenas a aquisição de um produto que poderia ser substituído por uma canja de galinha morna.