DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Genuflexório

A comida que não sai da lembrança é aquela que abençoaríamos duas vezes, antes de comer de joelhos, caso nos deparássemos com ela novamente. De todas as degustações, combinações, todos os temperos provados e jantares do qual participei, de chefs pouco ou muito conhecidos, o prato que me faz fechar os olhos de arrepio e emoção, ainda hoje, é um cassoulet feito pelo Steffen, meu mestre das cozinhas.
Cassoulet é uma feijoada branca, tradicionalmente cozida com pedaços de frango e lingüiça. Steffen, pois, a fez com pato. Levou dois dias para prepará-la, tamanho foi o ritual. O caldo da caça para o feijão, impecável, a maciez da carne cozida lentamente em sua gordura, idem. No prato, o paraíso. Depois disso, o sorriso descansado e uma conclusão: vale a pena!
Quando entrei na cozinha de Steffen Serup Andersen para um estágio, ele me pegou pelos braços e disse com aquele sotaque dinamarquês: "Você vai perder muitos amores, porque viver dentro de cozinha de restaurante não é fácil. Não tem sábados, domingos ou feriados de folga. Não tem horários de sobra para nada. Não tem vida social! Tem certeza que quer isso?" Parecia uma condição para ser aceita trabalhando ao lado dele. Ou eu me assustava com a pergunta e ia embora correndo, ou ficava sem levantar questões. Era hora de decidir. Não só o estágio, a carreira toda. Mas tenho nas veias os mesmos ingredientes que ele: paixão e loucura pela cozinha. Steffen foi para mim o chef de referência, o que me deu start, o que mostrou que valia a pena arriscar a perder amores... ou conquistá-los pelo estômago. Trabalhar ao seu lado foi o maior privilégio que pude ter. Conheci um outro tipo de vida dentro da cozinha. Não a de sacrifícios, mas a de alquimia, a dos temperos, a da criação. Por isso lhe agradeço, divino guru, como disse Eça de Queiroz, com infinito assombro e religiosa reverência.

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