DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

El día que me quieras

Orlando, um velho lobo do mar, servia-se de ceviche, enchendo a boca dos pedaços de uma pescada fresca curtida no limão. Sentia também o gosto inconfundível do coentro e da acidez da cebola roxa enquanto mastigava. Depois de engolir cada garfada pausava a boca por um instante e deixava o sabor da pimenta vermelha fazer as vezes em seu paladar.
O preparo do jantar era interrompido somente para virar os discos de Carlos Gardel e lembrar-se com nostalgia de Salviano Lisboa e sua Lucinha.
Na panela de barro, uma caldeirada de frutos do mar ia apurando em fogo baixo, até que ele terminasse o primeiro prato.
Essa caldeirada tem uma história.
Quando conheceu Lúcia, seu grande e perdido amor, escolhia camarões e mariscos no mercado de peixes perto de sua casa. A mulher aproximou-se com olhar curioso, dizendo que nunca havia provado frutos do mar. Ela, recém-chegada do interior. Ele, um bêbado convicto. O homem falou, ainda sóbrio àquela hora do dia, com propriedade, sobre cada crustáceo, seus sabores, o modo de limpar e ainda descreveu a receita predileta, a caldeirada da mãe:
- Você prepara um bom caldo com as cascas dos camarões, as espinhas dos peixes brancos, pedaços de cenoura e algumas folhas de alho-poró. Enquanto tudo isso cozinha, uma outra panela vai sendo preparada com cebola e alho, um azeite bom para a fritura, um pouco de molho de tomate e os frutos do mar refogadinhos. Acrescenta um cálice de vinho branco, deixa evaporar e finalmente mistura o caldo coado para terminar o cozimento.
Apaixonaram-se. Trocaram telefone e marcaram encontro num restaurante à beira-mar. Por causa de um contratempo, Lúcia acabou atrasando uma hora e meia do horário combinado. Como algumas semanas se passaram até que acontecesse este segundo encontro, a moça mudou o visual, cortou os cabelos, tingiu-os de outra cor e deu uma repaginada em seu estilo pessoal, o que fazem as pessoas felizes motivadas por um grande amor. Tudo estava perfeito até ali.
Ao entrar no resturante, viu Orlando no balcão, virando mais um copo de alguma bebida gelada, tentando se equilibrar no peso do próprio corpo. Ao lado, um sanfoneiro tocava El día que me quieras, acompanhado pela voz esganiçada e torta de Orlando. Lúcia se aproximou, lenta e receosa, ainda questionando se era aquele o homem que havia conhecido no mercado de peixes.
Ele não a reconheceu. Olhou-a fixamente, de olhos semicerrados, levantou o copo e disse para o restaurante inteiro ouvir:
- Assim declarou Tom Jobim: cada copo que bebo é uma mulher que não tive. Ou foi o Vinícius?
E caiu duro para trás, esqueceu-se das pernas.
A mulher, com muita calma, virou-se para o garçon que apressadamente vinha acudir o cliente e mandou o recado:
- Diga para esse cavalheiro, quando ele acordar, que cada bêbado que sai do meu caminho é um idiota a menos pra aturar.

Nenhum comentário: