DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Baudelaire, Savarin e o vinho

Em seu ensaio "Do Vinho e do Haxixe", Baudelaire ironiza:

Um homem muito célebre, que era ao mesmo tempo um grande tolo – coisas que andam muito bem juntas, ao que parece, como mais de uma vez terei, sem dúvida, o doloroso prazer de demonstrar – ousou, num livro sobre os prazeres da Mesa, composto do duplo ponto de vista da higiene e da satisfação, escrever o que se segue no artigo VINHO: "O patriarca Noé passa por ser o inventor do vinho; é um licor que se faz com o fruto da vinha."
E que mais? Mais nada: é tudo. Por mais que folheeis o volume, que o vireis em todos os sentidos, que o tenteis ler de trás pra adiante, de costas, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, nada mais encontrareis sobre o vinho na Fisiologia do Gosto do ilustríssimo e respeitadíssimo Brillat-Savarin senão que: "O Patriarca Noé..." e "é um licor..."
Suponho um habitante da Lua ou de qualquer planeta afastado, que, viajando pelo nosso mundo e cansado das suas longas jornadas, pense em refrescar o palato e aquecer o estômago. Quer pôr-se ao corrente dos prazeres e dos costumes da nossa terra. Ouviu vagamente falar de licores deliciosos com os quais os cidadãos desta esfera conseguiram, à sua vontade, coragem e alegria. Para estar mais certo da escolha, o habitante da Lua abre o oráculo do gosto, o célebre e infalível Brillat-Savarin, e ali encontra, no artigo VINHO, esta informação preciosa: O Patriarca Noé... e esse licor se faz... Absolutamente digestivo. Muito explicativo. É impossível, depois de ter lido esta frase, não ter uma idéia justa e clara de todos os vinhos das suas diferentes qualidades, dos seus inconvenientes, da força que exerce sobre o estômago e o cérebro.
Ah! caros amigos, não leiais Brillat-Savarin. Deus preserve de leituras inúteis àqueles a quem ama, é a primeira máxima de um livrinho de Lavater, um filósofo que amou os homens mais do que todos os magistrados do mundo antigo e moderno. Nenhum bolo foi batizado com o nome de Lavater; mas a memória deste home angélico viverá ainda entre os cristãos, quando até os bons burgueses já tiverem esquecido o Brillat-Savarin, espécie de brioche insípido cujo menor defeito é servir de pretexto a uma tagarelice de máximas totalmente pedantes, tiradas da famosa obra-prima.

Após o desabafo e a lavada de Baudelaire, veio o desafio. E existe algo mais para escrever sobre o vinho, depois do texto abaixo? Incansável, o poeta prossegue:

Parece-me por vezes que ouço dizer o vinho: - Ele fala com sua alma, com essa voz dos espíritos que só pelos espíritos é ouvida. – "Homem, meu bem-amado, quero lançar para ti, apesar da minha prisão de vidro e dos meus ferrolhos de cortiça, um canto cheio de alegria e de esperança. Não sou ingrato; sei que te devo a vida. Sei o que te custou de trabalho e de sol nas costas. Tu deste-me a vida, eu te recompensarei. Pagar-te-ei largamente a minha dívida; porque eu sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta sedenta pelo trabalho. O peito de um bom homem é uma morada que me agrada muito mais do que estas caves melancólicas e insensíveis. É um alegre túmulo onde cumpro o meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande reboliço, e dali, por escadas invisíveis, subo-lhe ao cérebro onde executo a minha dança suprema."
"Ouves tu agitarem-se em mim as poderosas canções dos tempos antigos, os cantos do amor e da glória? Sou a alma da pátria, meio galante, meio militar. Sou a esperança dos domingos. O trabalho faz os dias prósperos, o vinho faz os domingos felizes. Com os cotovelos assentes na mesa de família e as mangas arregaçadas, tu me glorificarás altivamente e estarás verdadeiramente contente."
"Iluminarei os olhos da tua velha mulher, a velha companheira dos teus desgostos quotidianos e das tuas mais velhas esperanças. Enternecerei o seu olhar e porei no fundo das suas pupilas o fogo da juventude. E ao teu filho, palidozinho, esse pobre burrico atrelado à mesma fadiga que o cavalo da charrua, dar-lhe-ei de volta as belas cores de seu berço, e serei para esse novo atleta da vida o óleo que reforça os músculos dos antigos lutadores."
"Cairei no fundo do teu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o sulco dolorosamente lavrado. A nossa íntima reunião criará a poesia. Nós dois faremos um Deus, e voaremos para o infinito, como os pássaros, as borboletas, os fios da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas."

Um comentário:

Anita disse...

Aaah... Os franceses (e italianos) gostam mesmo de discorrer sobre comida e bebida, fazendo dissertações, poesia e literatura. Baudelaire deve ter achado um acinte a brevidade do Savarin a respeito de uma bebida tao básica e fascinante. Lembro-me de um livro francês sobre comes e bebes onde o autor discorria algumas paginas sobre texturas de pates. Fascinante. E eu nem ligo pra pates e rilletes.