DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

terça-feira, 8 de julho de 2008

Desconhecidos

(Longe da cozinha, ainda no divã).
A noite começava calma e sem brisa nenhuma. Nas lojas, pouco movimento. Sentei por um instante num banco do piso inferior daquele shopping aberto, ainda incomodada com as velhas questões de valores e conceitos que não desistiam de mim, não me deixavam relaxar. Observando as pessoas que passeavam, perguntava-me se realmente estava tudo bem, ou se secretamente não carregavam também aqueles tijolos quebrados, sobras de material de construçõezinhas medíocres que fazemos ao longo da vida, e que não podemos devolver a lugar nenhum – uma vez encomendados e não aproveitados, viram entulho psicológico. Sucatas emocionais. Iguais a esses modelos-padrão para viver que a maioria acredita, caso contrário não encontram um lugar ao sol. Consumismo, comportamento, moda, moradia bacana de acordo com as últimas tendências... Comigo não estava nada bem. O ser humano anda bem?
Peguei o carro tentando deixar o incômodo de lado. Não consegui. Mesmo assim seguia pro meu destino a 40 por hora e com o olhar desfocado das coisas - totalmente contrário do que deveria ser na frente da direção.Vários veículos ultrapassaram pela esquerda. Carros importados, carros velhos, ônibus, vans e motos. Alguns buzinaram pela minha lentidão. A pressa da rotina lhes pressionavam. Os faróis iluminaram um puxador de carroça que vinha pelo acostamento no sentido contrário e carregava uma criança sobre um grande saco amarrado de lixo reciclável. Aquela avenida larga dava acesso a várias entradas de condomínios de casas. Um ponto de ônibus do outro lado da pista abrigava algumas domésticas que voltavam para seus lares. No canteiro central a escultura feita de arame de um imenso cavalo.
Em alguns segundos tudo o que já estava desfocado acabou sumindo de vez. A realidade ao meu redor mudou. A matéria ficou invisível. Não havia ferro, concreto, tijolos. Não havia asfalto, postes, árvores, plásticos ou fios. O ponto de ônibus não estava lá, nem tampouco os muros dos condomínios. O que passou a se tornar nítido eram as formas humanas daquele lugar, estivessem elas onde quer que seja, e nada mais que pudesse escondê-las. Agora elas apareciam aos montes, atrás das supostas paredes das casas, nos bancos dos veículos que passavam, nos quarteirões próximos, até onde a vista se perdia. Também não havia rostos, roupas, anéis, sapatos. Nada que identificasse as pessoas. Apenas as formas, umas brancas, outras cinzas, vermelhas ou azuis. A cena lembrava uma atmosfera espiritual. Eram os mesmos corpos da cena de alguns segundos atrás, fazendo os mesmos movimentos, só que agora coloridos, leitosos, como espectros, como ectoplasmas, sólidos, nada ao redor os escondiam. Não havia o chão, apenas o infinito céu escuro acima de suas cabeças, de minha cabeça.
Tive que parar o carro subitamente e jogá-lo para fora do trajeto, não sabia mais o limite de distância do veículo que ia adiante de mim. Observava boquiaberta esses desconhecidos. Deduzi que se voltasse focar a matéria tudo voltaria ao normal, mas não fiz esforço para isso. Minha curiosidade, acompanhada de tamanho assombro, fazia com que eu me concentrasse ainda mais naquelas silhuetas coloridas.
Embora não enxergasse a matéria podia sentir o banco do carro, a direção e a porta ao meu lado fechada. Tudo continuava em ordem, também não houve alteração no ritmo das pessoas. “Meu Deus.” Respirei fundo. “O que é isso?” Fechei os olhos. “Não banco essa loucura.” Não estava num sonho. Alguns segundos com os olhos fechados me questionei o que fazia com que as pessoas tivessem essas diferenças de cor, que já nem sabia se eram internas ou externas. Tive certeza de que não se tratava absolutamente de diferença social. Inteligência? Saúde? A saúde do corpo é conseqüência da saúde emocional. Ou espiritual? Ou as cores definiam um conjunto de causas? Branco. Cinza. Vermelho. Azul. Pessoas de cores diferentes, lado a lado. Desconhecidos sem saber. As cores não indicavam que faziam parte de uma mesma família ou de um grupo de trabalhadores a espera do ônibus. Não havia nada que os caracterizasse como pessoas pobres ou ricas, feias ou bonitas, baixas, magras. Nenhum padrão que indicasse alguma classificação ou rótulo (para um julgamento). As cores das pessoas trariam então outros critérios para um julgamento se soubesse de seus significados? Ainda assim, julgamento (por isso não me importo em saber).
Abri os olhos e voltei a notar a matéria ao meu redor. As pessoas como antes. O som dos veículos, da ambulância que passava, da voz da criança sobre a carroça, que agora pedia alguma coisa pro pai. Esforcei-me para tentar focar novamente as cores dos que estavam ao meu alcance. Ainda mescladas à pele, sumiram lentamente.

Nenhum comentário: