DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O presente

Nós da cozinha sempre chegamos muito cedo aos eventos: aquele jantar estava marcado para as vinte e trinta. A anfitriã, não sei se por nervosismo ou sossego demais, apreciava um Royal Salute em pleno pôr-do-sol. Alegre e esfuziante pela noite especial que estava por acontecer, preparava-se para receber os seis convidados que escolhera a dedo.
A sala do jantar, que já era aconchegante, ia tomando cara de restaurante dos sonhos: as flores fotogenicamente arrumadas; a toalha de mesa impecavelmente engomada; os talheres reluzentemente lustrosos; as taças com ar de fragilidade, que pareciam nos convidar a protegê-las com a mais sutil delicadeza; guardanapos dobrados como pelas mãos de um estilista; baldes de gelo estrategicamente colocados e um quase imperceptível cheiro de lavanda no ar.
O garçon repassava a sequência de vinhos que acompanharia os pratos do cardápio. Na cozinha, o cenário completo de sempre, o som das facas, dos pacotes, das latas e o vapor das panelas que subiam, levando para todos os cantos o aroma de cada ingrediente.
E assim tudo começou. Cada convidado que chegava dava um pulo na cozinha, falava um “oizinho”, xeretava carinhosamente o ambiente, contava sobre uma receita qualquer e voltava para a sala de forma muito descontraída.
Aquela noite parece ter sido interminável, deliciosamente interminável. Pratos cheios eram levados da cozinha para a sala e garrafas vazias de lá voltavam.
Altas horas a elegante e badalada anfitriã entra na cozinha pé ante pé, naquele velho e conhecido entorpecimento etílico e procura nos armários alguma coisa. Abre uma lata linda daquelas importadas de bolachinhas banhadas em chocolate e, ali mesmo, em pé como se tivesse ordenado que o tempo parasse ou como se estivesse sozinha naquela casa imensa, come de olhos fechados em seu infinito prazer, uma a uma.
Um pedaço da noite ainda restava. Depois da pausa pós-jantar ainda viriam os licores, a sobremesa e o café. Segundo tempo: de volta à mesa os preparativos para o gran finale saía, e na cozinha, às pressas, entra uma convidada eufórica e pede: “deixei por aqui uma lata de bolachinhas para fazer surpresa, alguém viu?”

5 comentários:

Ita Andrade disse...

fala verdade, sua vida é dura mas nem tanto, né não?
beijoca

Regina Bui disse...

Preciso de morfina de vez em quando!

Anônimo disse...

Aí ai, que jantar mais maravilhosooooooooooooo, e nada como esta anfitriã, ladra, rs rs, ela deve ser gente boa dimaissssssssss rs , eu teria feito a mesma trapaça, na cara de pau.
Hummmmmm imagino só os aromas,,,
Adoreí o post, como sempre vc nos faz viajar com sua gastronomia poética.
beijocas nas bochechas
mineira

Anita disse...

Ue, se o presente surpresa era pra anfitria e ela mesmo o achou... Belezera !

Regina Bui disse...

Kakakaka!
Olha Anita, eu não tinha pensado nisso.