DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sábado, 6 de novembro de 2010

O último pedido

Um rei encontrava-se debilitado em seu leito de morte. Sem forças ou propósito para pensar na vida, mantinha os olhos fechados por se recusar a ver alguma coisa inédita. O pouco pensamento que valia a pena gastar naquele momento era direcionado ao bem-estar físico e ao desligamento das coisas terrenas, isso ele fazia questão. Ouvir, de nada adiantava, era tudo muito incômodo. Ninguém mais sabia o que fazer. O rei preparava-se com muita dedicação, minuto a minuto, para conhecer o tão falado trono de Deus. Ou o cheiro do enxofre.
Mas faltava-lhe algo e ele sabia. Num fim de tarde pediu que lhe agradassem o paladar, o último dos sentidos que considerava relevante.
Então listaram os pedidos, com os detalhes que pouco a pouco ordenava, nem um grão a mais, nem um grão a menos de sal. Tudo tinha de ser preparado com delicadeza, como cada um dos ingredientes que escolheu.
Às 21:00 hs pontualmente o desfile de degustações estava pronto. A fila de serviçais, cada um com uma bandeja de prata, aguardava no corredor.
O primeiro entregou-lhe uma xícara de duas abas com o caldo morno de uma canja de aves de caça. Em seguida chegou uma fatia de fígado de ganso com pimenta de aroeira. O terceiro serviu-lhe aspargos frescos com um fio de azeite curtido no endro amassado. Logo depois vieram as ostras, acompanhadas ainda de cheiro de mar, sobre um filé de peixe-espada cozido com aipo. O outro trouxe-lhe uma casca inteira de camembert derretida dentro do pão quente. E como não podia deixar de sentir mais uma vez, um pêssego crocante e doce do bosque, embrulhado em sua pele aveludada.
Ficou faltando na sequência a última coisa da lista, que ainda alvoroçados, estavam por resolver: uma taça de cajuína bem refrescante. Mas naquele reino ninguém sabia o que era.


Pintura: Jean-Baptiste Debret

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