DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

domingo, 13 de dezembro de 2009

O bife

A mulher queria bife. E quando é que ele teria tempo? Nem a aposentadoria garantiu-lhe sossego. Nem a viagem do filho ou a morte do cão. Ele queria tempo para sua poesia. Mas não era só um bife, tinha de ser à milanesa, empanado em clara de ovo e farinha de rosca. Há dois verões a mulher adoecida lhe tomava o tempo e um único sonho: escrever poesia. O bife, era preciso prepará-lo em etapas. E não havia farinha de rosca, mas algum pão amanhecido. Ele sabia que tinha talento. Precisava de inspiração, interrompida a cada hora. O que mais lhe ocuparia o tempo depois de preparar o bife? Talvez a limpeza da varanda ou o preparo de algum chá. A grandeza da insatisfação e da raiva que o dominavam era proporcional à mansidão, ao silêncio submisso e sem voz que não estava mais disposto a engolir. Culpa versus dever. Encarou a lâmina da faca, tão desafiadora naquele instante, mas lembrou-se que a carne viera cortada. Calado, descobria a cada momento um eu desconhecido. Tudo estava sob seu domínio, guiado pelas meticulosas ordens da mulher. Poderoso panaca. Apavorava-se e em seguida sorria nervoso. Antes, acreditava numa poesia construída a partir do amor, o mesmo que agora lhe cutucava com sarcasmo. Ralou o pão até os dedos, colocou pesado a panela no fogão, derramou com displicência o óleo, quebrou os ovos como se estilhaça vidro, separou a clara, afogou enforcada a carne na gosma até o fundo do prato, escorreu e jogou farinha, como terra seca. Esqueceu-se do sal. Até quando duraria aquela noite, que começou numa tarde qualquer e não tinha dia para acabar? Esperou o óleo ferver. Imaginou o estrago na pele. Pensou uma poesia densa, mas era inconcebível. Aquilo não combinava com poesia. A sua poesia nasceria no escritório ensolarado, com o cheiro de um bife sendo frito para ele. Soltou na gordura quente, com um gesto suave de carinho involuntário, a carne empanada de tempo perdido. (Desejava do futuro algum benefício antecipado: um funeral libertador). Mas tinha de esperar a carne sofrer – ao ponto para mais!, assim foi exigido.
Depois de meses, a mulher faleceu. Lançou seu primeiro livro de cozinha com suspense: nunca revelava os segredos das receitas.

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