DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Depois não diga que não avisei

O ano é de 2.058. Dinda procura por algo na cozinha, na velha cozinha septuagenária, mas não se lembra direito o que é. Vasculha daqui, remexe dali, coça o queixo e, ah sim, é o recipiente azul que está procurando. Nele estão guardadas as porções de chá de vitaminas complementares que o especialista em ossos lhe indicou. Caminha vagarosamente até o recipiente azul, mas abre com dificuldade, pois suas mãos agora trêmulas esqueceram-se das habilidades. Coloca uma porção no cilindro de fibra ótica reciclada e enche de líquido bioingerível aquecido. Depois, liga o reciclador de oxigênio pós-inalado. Agora Dinda não cozinha mais, mas auxilia sempre que pode a nova mescladora de substâncias alimentares:
- No meu tempo era cozinheira que chamavam...
A moça era nova, começou sem muita experiência, mas fazia bem as combinações diárias do complexo auto-sustentável, o que antes chamávamos de ingredientes.
Dinda senta-se na cadeira, com certa dificuldade pelos joelhos endurecidos, enquanto a moça mistura a pasta de batatas sintética com um pouco de gordura monocalórica em pó. Corta a embalagem de tomates desidratados e os mete de molho em uma solução de vinagre de vinho transclonado. Por fim, despeja uma medida de favas-agulhinhas - uma espécie híbrida de arroz com feijão - no processador de inchaço de grãos e cereais.
Dinda olhava com saudosismo para suas antigas panelas, que ajeitadas decoravam alguns cantos da cozinha, quando ouviu na teleplasma de nanochip as notícias do dia:
- A segunda edição do Jantar do Século aconteceu ontem, após 50 anos de sua idealização. Os filhos dos chefs que participaram do primeiro jantar executaram o cardápio para 80 pessoas, como aconteceu no evento histórico de 2008. Politicamente corretos, fizeram um banquete beneficente e reverteram a venda dos convites a núcleos sociais carentes. Mas cerca de 700 manifestantes que protestaram do lado de fora, revoltaram-se, exigindo mais uma vez que o governo providencie meios de produção natural de alimentos. Afinal de contas, os pratos oferecidos contavam com verduras e legumes raríssimos e de altíssimo valor, inacessíveis para 99% da população. Dentre eles, a exótica alface crespa e a delicada berinjela baby, cultivadas em bolhas, nas terras suspensas dos laboratórios da FGV (Fazenda Gourmet Virtual), diretamente da seção de Reprodução do Ontem. A polícia controlou o tumulto jogando bombas de odor de efeito moral.Num suspiro melancólico, Dinda, virando-se agora para a moça distraída com seus afazeres, desabafou:
- Que saudades do cheiro de terra. E da minha hortinha...

5 comentários:

Cruela Cruel Veneno da Silva disse...

que gostoso.

ainda bem que em 2058 eu já vou estar na terra dos pés juntos... porque não sivro pra esse negócio de comiga que não é comida não.

pra mim cozido tem costela de vaca, banana da terra, batata doce, mandioca, abobora e cenoura.

Regina Bui disse...

...e buchada de bode.

Cruela Cruel Veneno da Silva disse...

sabe que aqui perto de casa abriu um feijão de corda (tem aí também) e eu sou nordestina né?

então... ja sabe!

Ana Florence disse...

Lindo Re.

Regina Bui disse...

Aninha,
que bom ter você por aqui!