DISCURSOS GASTRONÔMICOS E MACARRÔNICOS

sábado, 29 de maio de 2010

Cuscuz macio e saboroso

Não entendo cuscuz como um bolo seco de farinha de milho e alguns pedaços de legumes e ovos engessados dentro dele. Jamais. Mesmo que tenha uma decoração apetitosa, o engano dura até a primeira garfada.
Para dar sabor à esse delicioso prato, é preciso que a farinha seja cozida em um caldo cheio de personalidade, e não apenas em água quente.
Os pedaços de sardinha, palmito, ovo, camarão ou seja lá o que for, fazem parte da natureza de toda receita, mas o caldo é que deve acentuar o ingrediente principal. Por exemplo, se o cuscuz for de camarão, não só os pedaços de camarão deverão encarregar-se de espalhar o sabor para uma assadeira inteira, mas um caldo feito de sua casca deve ajudá-los. O mesmo ocorre com um cuscuz de palmito. Neste caso, um vidro do caule carnudo vai bem picadinho, e outro, batido com o caldo.
E assim acontece com os demais ingredientes e temperos: uma parte em pedaços e outra líquida - azeitonas, pimentinha, alho, cheiro verde, tomilho, champignon e o que mais combinar.
Também uso tomate pelati no caldo. E para a maciez, pasmem: quase meio vidro de azeite de oliva no final do cozimento do cuscuz. Se mesmo assim ainda estiver faltando alguma coisa, salgue corretamente, até sentir a essência de cada ingrediente, porque o sal é o verdadeiro realçador de sabores.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O cardápio dos sentidos II

Claro, esqueci dos APIMENTADOS ou PICANTES, onde desfilariam os temperos mexicanos, baianos e tailandeses. Ou tenha me esquecido também de outras texturas e sabores a serem explorados, afinal a idéia é uma pedra bruta que, como todas, teria de ser cuidadosamente lapidada .
A discurso maluco surgiu da questão da identidade dos restaurantes. Sim, hoje trabalhamos com a cozinha contemporânea, a globalização da gastronomia, que permite a mim e a outros profissionais harmonizar temperos e ingredientes de cada canto do mundo. Logo, o cardápio, além de ter as sugestões globalizadas, poderia ir direto ao assunto cutucando o paladar do cliente e, quanto a mim, o desafio de criar pratos com um novo enfoque.
Até numa proposta mais tradicional esse formato se encaixaria. Talvez, ao invés de elegermos um prato como principal, escolheríamos com mais gosto o principal de um prato, mesmo sendo uma salada, uma sopa ou as receitinhas de uma degustação.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O cardápio dos sentidos

Já que se fala tanto na cozinha dos sentidos, acho que se abrisse um restaurante hoje, definiria o cardápio não tanto por um segmento de comidas estranhas, mas por desejos tendenciosos do nosso cotidiano. Não tem aquele dia em que você acorda com vontade de comer algo mais adocicado ou mais ácido? Pois então.
Portanto, ao invés de elaborar um cardápio de maneira convencional como: saladas, peixes, carnes, massas, risottos e etc, faria as sugestões da seguinte forma:
CÍTRICOS-ÁCIDOS
DEFUMADOS
AMANTEIGADOS
AZEITADOS
CROCANTES
SALGADOS-DOCES
e um nome mais chique para... GORDUROSOS, onde entraria a picanha, a feijoadinha e o peito de pato.
Dentro de cada classificação as opções, seguindo a sequência acima: nos CÍTRICOS-ÁCIDOS, sugestões de molhos e temperos a base de limão, vinagre, tangerina ou sumagre.
Nos DEFUMADOS, lingüiças, costelinhas e comidas com o sabor e o perfume do bacon. Peixes que passam pelo mesmo processo, como salmão, truta e hadoque. Sopas também são convidativas com esse delicioso aroma.
Em AMANTEIGADOS teríamos muitos dos clássicos como risottos, massas e carnes gerais com os tradicionais molhos finalizados com derivados do leite.
Os AZEITADOS seriam algumas conservas, ou elaborações mediterrâneas bem leves.
Os CROCANTES estariam talvez mais presentes nas entradas, com porçõezinhas de pastéis, manjubinhas fritas, panceta ou nos pratos à milanesa.
E quem não gosta da mistura de SALGADOS-DOCES? Frutas e geléias nas saladas, nos molhos, no quente e no frio.
É possível ou não agradar a gregos e troianos? Gostamos de mexer com os sentidos do paladar, mas principalmente o de matar suas vontades.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Em defesa da coerência e da lógica

Postei em setembro de 2008 uma entrevista com Michael Pollan à Folha de S.Paulo, sobre o livro de sua autoria Em Defesa da Comida. Volto a falar aqui sobre o excelente trabalho deste jornalista, que deveria ser lido e relido por qualquer cidadão que esteja cansado da ditadura da alimentação. Michael comenta detalhadamente a industrialização da comida nos Estados Unidos na década de trinta e como essa cultura equivocada tomou conta de nossas geladeiras. E não para por aí: alerta para a busca insana da “refeição completa” através de complementos, shakes, cereais e - se o livro fosse publicado hoje - estaria também a ração humana numa listinha que poderia ser chamada de “Imitações de Comida”. Arrisca ainda: trinta anos de conselhos nutricionais nos deixaram mais gordos, mais doentes e mais malnutridos. Imperdível!

terça-feira, 11 de maio de 2010

Entre família e panelas

No dia das mães a comemoração é sempre dupla. Minha tia, que também é minha madrinha, não tem filhos. Sendo assim, se a mãe ganha presentinho, madrinha também ganha. Se a mãe ganha flores, madrinha também.
O cardápio foi especial para a data, como não poderia ser diferente: peito de pato com risotto de aspargos frescos.
Para quem não sabe, pato tem a carne avermelhada e é, na minha opinião, uma das carnes mais saborosas que existem. Fazer o magret (peito), é muito facil: ele vem com uma capa grossa de gordura, como a picanha. Basta colocar essa parte para baixo numa frigideira anti-aderente e fritar por sete minutos. Não é preciso nem um pingo de óleo, pois uma parte da gordura vai derreter rapidamente. Após os sete minutos, vire o peito e frite a parte da carne por três minutos no máximo (se passar disso, a superfície da carne ficará muito dura). Depois é só fatiar e passar na manteiga ou com um pouco da própria gordura, se quiser a carne bem passada. Mas o ideal é deixá-la rosada. Essa é a maneira mais simples de se preparar um magret, apenas ele, uma frigideira, manteiga e sal.
Alguns restaurantes o servem com vinho do porto e cassis, outros preferem molho de laranja e gengibre. E todas as maneiras são deliciosas, garanto.
Mas no meio do vai e vem de colheres e panelas, lembrei-me de um episódio da infância e fiz minha mãe puxar sua memória pra bem longe: e aquele peru que você encomendou para o Natal?
Ah, sim. A história é a seguinte. O seu Pedro granjeiro criava galinhas e vendia ovos e frango frescos. Um dia comentou com minha mãe que peru de carne escura era mais saboroso. Dois dias antes do Natal lá estava um peru perambulando pelo quintal de casa. Fazia glu glu e tudo mais. Bem, na véspera, meu avô encarregou-se de fazer o trabalho sujo e nem disso eu me lembrava direito.
De fato naquela ceia, segundo a opinião dos adultos, comprovou-se que a carne escura é mais saborosa mesmo, mas a questão que ficou foi: por que é que hoje não se vende peru de carne escura? Fui pesquisar. Surpreendentemente, descobri que no começo, a Sadia vendia os perus de carne escura e depois passou a criar apenas os de carne branca, importados dos Estados Unidos.
Existe aí o mito de que carne branca é mais saudável, mas é só mito. Parece que carne escura tem maior valor nutricional e tanto a carne escura quanto a branca contêm menos gordura do que a carne vermelha. Acho que, como tudo na cozinha, é só uma questão de estética. É claro que a carne branca agrada mais aos olhos do consumidor.